2011/02/19

Alexandre e o nó górdio

Jean –Simon Berthélemy,  Alexandre cortando o nó górdio, 1767 (École des Beaux-Arts, Paris, França)

Como referira num texto anterior[1], a mitologia, assim como a tradição escrita grega, são o testemunho da representação do mundo antigo através de um vasto conjunto de textos como de representações pictóricas. Neste âmbito, e com a noção sempre presente de que a História se move continuamente para lá dos limiares dos tempos, a lenda que decidimos abordar aqui é provavelmente uma das mais actuais da tradição grega: “O nó górdio”. Vejamos…
Ásia Menor (actual Turquia). Século VIII a.C.
O reino da Frígia (no centro da Turquia) enfrenta um problema difícil de resolver: o rei não tem herdeiro e a sua sucessão está em perigo. Um oráculo anuncia então que o novo rei entraria no templo de Zeus, na capital do reino, conduzindo uma carroça. Os poucos que conheciam o oráculo estavam excluídos da competição: exigia-se a inocência da alma.
Um dia, Górdio, um agricultor da Frígia, vê uma águia pousar-se na sua charrua e aí permanecer todo o dia. Entendendo isto como um sinal de Zeus, cuja águia era um dos símbolos, o camponês decide partir para a cidade a fim de honrar Zeus com uma oferenda a Zeus. Górdio penetra no templo, na sua carroça. É de seguida aclamado rei… um rei da inocência. Em memória de tão improvável, mas não menos glorioso, dia, Górdio decide perpetuar o momento através de um símbolo digno da sua humilde condição de lavrador e artesão, mas também merecedor da nobreza do seu saber, do trabalho das suas mãos, da forma dedicada como sempre se entregou aos ofícios da terra e como sempre trabalhou os frutos de uma Natureza agreste mas compensadora. Górdio ata o timão da sua carroça ao altar de Zeus com um elaborado nó. Este nó, fruto da sua arte, do seu saber, no qual passa largas horas do seu tempo, é a representação da sua própria existência: cuidada, impregnada do seu gosto pelo trabalho aprumado e do vagar que este exige; é o tempo da sua vida... Este entrelaçar combina criatividade e fineza, engenho e simplicidade, em suma celebra a aliança, porque um nó é antes de mais um anel, um elo, entre a terra e o Homem. Mas ainda estava para vir aquele que seria capaz de desfazer o produto de tanta habilidade!
Para além desta lenda não nos chegou muito sobre o reino de Górdio. Mais famoso viria a ser o seu filho, Midas, a quem a mitologia atribuía a dom de transformar tudo o que tocava em ouro. O frígio Midas reinava do alto do seu palácio na cidade de Gordion, uma herança do próprio pai.
Um novo oráculo vem consagrar o inextricável nó de Górdio na tradição grega: quem conseguisse desatá-lo tornar-se-ia senhor de toda a Ásia. Muitos o contemplaram, muitos tentarem desenvencilhar o seu mistério, muitos quiseram entender a sua lógica, a coerência que o constituía. Mas “a César o que é de César”[2], só Górdio conhecia o segredo do seu nó, fora fruto da sua singular criatividade, do seu peculiar talento, só ele saberia desenredá-lo. Passaram séculos sem que o labiríntico nó seja desembaraçado, até que surge, embalado nas suas conquistas, Alexandre III de Macedónio, dito o Grande. A Ásia Menor sofre as razias das invasões macedónias e acaba quase integralmente sob o jugo de Alexandre. Durante a ocupação da Frígia, Alexandre ouve falar do oráculo e, numa sobranceira afirmação de poder, decide ser ele a resolver o que muitos, durante séculos, não conseguiram e assim concretizar a profecia. Já no templo de Zeus, e após uma curta inspecção ao complexo lavor de Górdio, Alexandre corta o nó com a sua espada. À sua volta, um silêncio ensurdecedor faz estremecer toda a Humanidade, todo o atempado e cuidado trabalho do Homem na sua luta constante para se extrair da sua animalidade original. Este corte transversal, frio e calculista, funda o mundo moderno, cria o «mundo da simplificação apressada; da experiência que destrói o seu objecto; da acção eficaz em detrimento do sentido; da mentira; dos elos quebrados»[3]. É este o mundo moderno, refém das imagens veiculadas pelos mass media, de “postais” adoptados pela esmagadora maioria da população, do materialismo das sociedades modernas. Todo o simbolismo do gesto de Alexandre Magno ilustra as preocupações dos nossos dias, isto é, a rejeição absoluta da complexidade. Desfazendo todo o mistério do nó górdio com um simples golpe de espada, cai todo o simbolismo de um mundo complexo, mas real, para dar lugar a um mundo desprovido de segredos e de sentido. É neste mundo que existimos. É neste mundo que se encontram as nossas escolas…
Na última década, a educação tem sido pensada à sombra deste atroz golpe de espada, à luz de processos meramente simplificadores e desprovidos de coerência, à luz exclusiva de execuções orçamentais. Estamos a falar de educação, do presente e sobretudo do futuro do nosso país. Exigências reduzidas; avaliações descaracterizadas, simplistas, sem qualquer pretensão à excelência; objectivos cada vez mais básicos; aprendizagens cada vez mais pobres: são estes os resultados do trilho delineado pela burocracia para a educação. Os exemplos práticos são inúmeros, desde as ciências humanas passando pelas ciências exactas até às áreas das expressões. Empobrecimento generalizado… Exames nacionais que, de ano para ano, se tornam cada vez mais acessíveis, não porque os alunos estão melhor preparados mas sim porque a exigência se vai desvanecendo. O que dizer do manancial de obras que era, há alguns anos, impreterível dominar no âmbito do exame nacional de Língua Portuguesa? O que dizer dos exames que exigiam análise, interpretação, fundamentação, espírito crítico? O que temos hoje? Plano nacional de leitura? Citando o seu preâmbulo: «O Plano Nacional de Leitura tem como objectivo central elevar os níveis de literacia dos portugueses e colocar o país a par dos nossos parceiros europeus.» Como, se os exames da língua materna já não exigem o domínio (apetecia-me escrever “a leitura prévia”) de obras de referência da nossa literatura? Se a avaliação não exige, ou exige muito pouco, porque razão insistir? Como esperar que depois os nossos jovens sejam o reflexo de uma lógica distinta?! Repito, porque razão insistir? Bem… porque é o nosso dever enquanto educadores, porque são os nossos próprios filhos, os nossos próprios netos, porque são o devir desta nação. Creio que é um motivo suficiente…
Mas se as directivas educativas emanam das esferas do poder, isso não exonera totalmente o corpo docente; parte da lenta e progressiva degradação do sistema educativo do nosso país é também da sua responsabilidade. Afinal, a exigência de cada docente quanto aos seus alunos não é quantificável por decreto! Está também nas nossas mãos. Recuperando o título da notável obra do pensador personalista, Denis de Rougemont, «pensar com as mãos» …


[1] Ver «O leito de Procrusto», 05/11/2010.
[2] Mt., 22, 21.
[3] Rougemont, Denis de, Doctrine Fabuleuse, Neuchâtel, Ides et Calendes, 1947, p. 96.

4 comentários:

  1. Gostei muito do texto, é muito claro e oportuno. Parabéns!

    bjs
    Natália

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  2. Não concordo com a ideia que relaciona a facilitação dos estudos em geral e a crescente ausência de textos literários canónicos na escola portuguesa (indiferenciada, igual para todos, ao contrário da Alemanha ou da Suiça). Para além da linguagem e dos referentes históricos e culturais muito longínquos, cada vez mais longínquos, é a própria necessidade de ler livros que deve ser equacionada. Não compreendo qual a necessidade de fazer ler a jovens de 15 anos poesia medieval, lírica camoniana, romances de Eça como os Maias. Não da forma académica como se faz.
    Pode-se ensinar a escrever e a ter um olhar curioso e crítico em relação ao mundo através de textos dos media que são mais facilmente exploráveis, deixando a leitura para momentos mais serenos que a Escola em geral com os seus mecanismos sancionatórios não permite.
    E a responsabilidade da família? Como sabes tenho exemplos familiares que me mostram que a educação vem, sobretudo, da família. Isto é educação, e não veio da Escola.

    Sou capaz de perante um texto da actualidade reflectir de forma crítica e sugerir a leitura de textos literários aos meus alunos. Não preciso de leccionar grandes clássicos para me sentir útil como educadora.
    O problema é mais genérico (também ocorre em França, sim) e tem a ver com a revolução tecnológica na qual estamos imersos. Podes ler Macluhan, que fala da importância dos media na configuração daquilo que somos.

    Susana Gonçalves

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  3. Estou a referir-me ao facto que os Exames Nacionais têm visto o seu nível de exigência diminuir drasticamente. Documentei-me para afirmar isso, pedi a opinião de alguns professores de Língua Portuguesa chegando a essa conclusão. Deparei-me com factos concretos que tendem nesse sentido. Por exemplo, manuais do 12ºano da mesma editora, dos mesmos autores, com o mesmo programa, isto é, o mesmo manual, mas um publicado em 2007 e outro em 2010: no primeiro, de 2007, no que respeita à análise de um texto incluía perguntas como "Analisa", "Interpreta", "Fundamenta","Dá a tua opinião"; na versão de 2010, para o mesmo texto, essas perguntas desapareceram e foram substituídas por "Sublinha no texto", "Assinala a afirmação certa", "Assinala as afirmações verdadeiras e falsas", "Indica", etc. Onde está o espírito crítico, a compreensão, a maturação de ideias, a sua ponderação? Desapareceu tudo. Este é um exemplo entre muitos...

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